Jorge Cramez fala sobre a sua longa-metragem “O Capacete Dourado”
Estreou em 2007 aquela que foi a primeira, e até à data única, longa-metragem de Jorge Cramez, O Capacete Dourado. Baseado numa histórica verídica, o realizador fez um retrato da complexa fase que é a adolescência. Os papéis principais foram vividos por Jota (Eduardo Frazão) e Margarida (Ana Moreira).
O filme retrata um grupo de adolescentes motards liderados por Jota, um jovem inclassificável, que vive em permanente conflito com tudo e todos. A sua forma de testar os limites, mais do que uma atitude de rebeldia, é um confronto com o horizonte do futuro que o aguarda. O seu destino não segue linhas rectas a não ser as do asfalto. É então que aparece Margarida. Jota não tem interior, Margarida não tem exterior. Apesar disso, ou por isso mesmo, eles encontram-se. O que poderão fazer? Apenas seguir em frente, mesmo que tudo esteja contra eles. O amor é para ser vivido.
Ligado ao cinema há cerca de 20 anos, Jorge Cramez já trabalhou como anotador e assistente de realização e realizou múltiplas curtas-metragens. Em conversa comigo pela ocasião do lançamento de O Capacete Dourado, o cineasta falou desta longa-metragem.
À conversa com o realizador de O Capacete Dourado
Goreti Teixeira (GT): O Capacete Dourado marca a sua estreia na realização de uma longa-metragem. De que forma se desenvolveu este projecto?
Jorge Cramez (JC): O argumento do filme foi escrito pelo Rui Catalão e o Carlos Mota para os telefilmes da SIC, mas acabou por ficar em cima de uma secretária, uma vez que esse projecto não correu como o pretendido e terminou. A história começou com um ‘fait divers’ de dois adolescentes que perante a proibição do namoro resolvem enforcar-se numa ponte. O acontecimento passou-se em Guimarães e teve dois finais opostos: a rapariga acabou por morrer, ele sobreviveu porque a corda partiu-se, mas acabou por ser julgado por homicídio involuntário.
Como partilho a casa com o Carlos Mota, o guião ficou por lá esquecido. Em 2003, fui ao Festival de Cannes, onde assisti à projecção do filme Elephant, do Gus Van Sant e tive como que um flash. Quando regressei a Lisboa peguei no guião, voltei a trabalhá-lo, enviei-o a concurso e obtive um subsídio. Contudo, devo dizer que O Capacete Dourado não tem qualquer relação com o filme do Gus Van que é passado num liceu e tem duas personagens adolescentes desregradas. Há coisas subliminares, mas são dois objectos cinematográficos distintos.
GT: A dada altura da rodagem do filme e durante a montagem acabou por se afastar da história popular, uma vez que não termina com o enforcamento, tendo um final feliz?
JC: Filmar não é ilustrar um guião. A cena do enforcamento só faria sentido se, no fim, o espectador achasse que era inevitável. No entanto, percebi que o enforcamento já lá estava, assim como o lado trágico e o arquétipo de Romeu e Julieta. Estas mudanças são um processo natural em cinema e, no caso, tem a ver com uma certa verdade, porque filmar uma coisa que não entendo é como que filmar algo que não está certo. No entanto, as sequências da morte foram feitas e farão certamente parte dos extras do DVD.
GT: Há alguma cena do filme que goste em particular?
JC: Gosto muito da cena em que a Margarida (personagem interpretada pela Ana Moreira) toma o pequeno-almoço com os pais. O plano tem cerca de três minutos, é uma cena de muito silêncio mas onde se percebe em absoluto o que se passa com aquela família. A relação pai/filha, homem/mulher, tendo como que um tom dos filmes dos anos 50. Gosto de outras cenas, ou melhor, gosto muito do filme e já consigo olhar para ele independentemente de ter sido eu a realizá-lo. É claro que houve coisas que escaparam, mas também se trata de uma primeira longa-metragem.
GT: O elenco convidado para o filme junta duas gerações de actores. Há uma explicação para a escolha destes actores?
JC: Tem simplesmente a ver comigo e com afectos. O único casting que fiz foi para a personagem do Jota (protagonista do filme interpretada por Eduardo Frazão), porque nenhum dos rostos de actores que conheço correspondia à personagem. Não queria entrar em clichés. Este é um puto que tem uma relação complicada quer em termos de desregramento que é também afectivo, quer problemas com o poder, nomeadamente, do professor, dos pais e até da comunidade local. Ao mesmo tempo ele é também bastante andrógeno, tem os cabelos aos caracóis… mas, no fundo, não passa de um pequeno rufia.
Depois tem os actores secundários como, por exemplo, o Carloto Cotta que é meu amigo e achei que tanto ele como os outros podiam construir as suas personagens. Já em relação aos actores mais velhos como é o caso da Alexandra Lencastre, do Rogério Samora ou da Rita Blanco é como que uma homenagem ao seu trabalho e por quem tenho muito respeito. No fundo, o elenco é constituído por actores de que gosto muito.
GT: O resultado final foi o pretendido?
JC: Essa pergunta é um pouco perversa, porque não quero defender o filme. A partir do momento em que digo acção e corta o filme é meu. Tive que adaptar uma planificação, trabalhar com os meios que tinha, mas apesar das suas fragilidades consegui fazer coisas bonitas.
GT: Esta estreia na longa-metragem fica também marcada pelo facto de O Capacete Dourado ter sido seleccionado para estar presente no Festival de Locarno, na Suiça. Esta presença pode ser entendida como o reconhecimento do seu trabalho?
JC: Sim. Fiquei muito contente, apesar da dimensão que teve nos anos 60 não ser tão grande como é a dos festivais de Cannes, Veneza e Berlim. É um evento que privilegia primeiras obras e a nossa passagem por lá correu muito bem. Fomos abordados na rua e o júri gostou do filme. É claro que gostava de ter ganho o Leopardo de Ouro, mas estar lá já foi gratificante e um grande prémio.
GT: Já equacionou ir para o estrangeiro?
JC: Para mim não faz sentido nenhum deixar Portugal e ir para França, Inglaterra ou EUA. Para ter uma ideia é mais difícil entrar na Universidade da Califórnia, em Los Angeles do que em Harvard. Se aqui existem duzentos candidatos, em Londres são, por exemplo, cinco ou 10 mil. Gosto muito de Portugal, gosto muito de Lisboa e, por essa razão, não faz sentido sair daqui, independentemente das dificuldades. Conheço pessoas que foram lá para fora e quando voltaram tiveram de começar do zero. Nunca equacionei sair de Portugal.
GT: Em «O Capacete Dourado» faz o retrato desta complexa fase que é a adolescência, com tudo o que de bom e mau pode ser vivido nesta idade. Consegue encontrar alguns pontos comuns entre os adolescentes de hoje e o adolescente que foi o Jorge Cramez?
JC: Absolutamente nada e até era um pouco chato. Os meus dias eram passados na Cinemateca a ver filmes, a ler livros e só descobri o lado lúdico da vida muito mais tarde. A rebeldia era outra. Fui punk, calçava botas da tropa, ia para o liceu com calças de pijama, tinha um corte de cabelo diferente, mas depois passava o meu tempo na Cinemateca. Ao contrário do Jota não tenho qualquer fascínio por motas ainda que a adrenalina da velocidade não me seja indiferente.