The Matrix: um exemplo notável da força do cinema digital
O cinema é desde o seu desenvolvimento um retrato da realidade e a sua consequente manipulação, mesmo quando se pretende que seja um retrato fiel à realidade. O filme The Matrix é um óptimo exemplo dessa capacidade de manipulação que o cinema é capaz de fazer.
Se relembrarmos Georges Méliès podemos observar no seu trabalho pioneiro uma inacreditável manipulação das imagens, já possível desde as primeiras experiências cinematográficas, muito antes do aparecimento dos recursos digitais. Georges Méliès terá talvez sido o mais pioneiro explorador dos efeitos especiais no cinema, mas também do fenómeno designado de virtualização, correspondendo o seu trabalho precisamente a um conjunto de características sobre as quais recaem as principais críticas actuais ao cinema digital.
Também Jean-Luc Godard foi pioneiro na manipulação de imagens em movimento, integrando o vídeo e as técnicas televisivas no cinema e conseguindo com isso criar uma nova linguagem cinematográfica, aproximando-a do digital. Isto para citar apenas alguns exemplos.
Na verdade, o cinema digital introduziu inúmeras novidades abrindo novos caminhos, tornando possíveis projectos até então inconcebíveis ou muito difíceis de executar, aumentou as possibilidades de captura, montagem e edição, o que, segundo o crítico João Lopes abalou os alicerces da história do cinema. Mas como é que isso aconteceu e porquê?
A revolução do cinema digital
Primeiro, o cinema digital revolucionou a Sétima Arte ao alterar os conceitos de filmagem: as câmaras são cada vez mais pequenas, leves e mais sensíveis, facilitando a entrada em certos locais, o que interessa bastante ao cinema documental, por exemplo.
Depois, o cinema digital permitiu também novas técnicas de fabricação de imagens: através da possibilidade de manipulação de elementos de uma imagem é possível inserir ou remover qualquer elemento, ultrapassando o simples efeito especial.
Mas a alteração mais preponderante foi a alteração da relação do cinema com o “real”. Agora, um plano já não é algo filmado em continuidade, nem corresponde a uma unidade temporal e espacialmente indivisível, porque pode nunca ter havido um tempo igual ao da acção, sendo a sua composição elaborada através de diversos fragmentos. Isto acontece principalmente pela inserção de fundos (ou espaços) posteriormente à rodagem da acção, o que já era feito através de projecções, mas durante o processo de filmagem.
Um dos melhores e mais notáveis exemplos desta alteração é a famosa trilogia de filmes The Matrix. Nestas obras carismáticas realizadas por The Wachowskis a inserção de espaços em pós-produção é gigantesca, uma vez que muitos ambientes necessitam de trabalho gráfico e de animações criadas por computador. Entre os vários efeitos especiais inovadores da trilogia The Matrix o mais reconhecido é o método criado propositadamente para o filme, chamado de “bullet time”, que foi criado para mostrar os personagens a desviarem-se das balas (recorrendo à perspectiva de centenas de imagens captadas por câmaras fotográficas e apenas duas câmaras de filmar). A escolha do tempo de exibição de cada imagem permite um efeito retardador que suspende, ou congela, o momento e nos permite ver imagens normalmente muito rápidas numa velocidade lenta, o que amplia o suspense.
O cinema digital pode ser mais democrático, quanto mais não seja porque os seus equipamentos são mais económicos e podem ser adquiridos por mais pessoas mas também porque permite muitas mais perspectivas e é mais vulnerável ao nível da narrativa. O cinema digital permite muito mais experimentação, e sem qualquer compromisso, uma vez que tudo pode ser feito e refeito de forma interminável.
A percepção do público também se alterou
As novas tecnologias permitem uma cada vez maior experimentação e consciencialização, por parte daqueles que produzem, mas também por parte dos espectadores, que assumem que nada é natural. Com a preponderância adquirida pelo cinema digital acredito que estamos realmente face a um novo capítulo na história do cinema. E tal como aconteceu com o aparecimento da fotografia, e depois do cinema, a televisão, o computador e a Internet, e todas as outras invenções de comunicação de massas que alterararam o modo como vemos e estamos no Mundo, o cinema digital foi e é um ponto de viragem para outra dimensão.
O digital (relacionado com impulsos eléctricos) não é virtual (susceptível de se exercer ou realizar, potencial, possível), e muito menos estão ambos fora do real (que existe na verdade, não é imaginário), mas estão cada vez mais inseridos no quotidiano. O termo virtual pode suscitar utopia, mas o digital não é utopia, embora possibilite a criação de utopias, como é o caso de ambientes, objectos, pessoas, não existentes… mas possíveis.
Embora eu não seja a maior apreciadora de filmes de ficção científica, animações por computador ou enorme aparato de efeitos especiais, só posso achar que as críticas exarcebadas ao cinema digital se assemelham aos mesmos medos que se generalizam em qualquer época de transição. Sempre que surge algo novo as pessoas muitas vezes não compreendem, ou têm simplesmente medo!
The Matrix: um marco importante na História do Cinema
O filme The Matrix (1998) realizado por The Wachowskis, é um marco na arte cinematográfica por utilizar técnicas nunca antes usadas. A primeira vez que vi o filme a narrativa protagonizada por Keanu Reeves, Laurence Fishburne e Carrie-Anne Moss entre outros grandes nomes, pareceu-me um pouco insípida (claro que não tecnicamente), mas num segundo visionamento, mais atento aos pormenores, gostei muito mais.
Sob a ficção há uma abordagem social e humana. Os diálogos, imagens e sons não são colocados aleatoriamente e há inúmeras ideias e conceitos disfarçados e subjectivos, estando recheado de paradigmas filosóficos, simbólicos (água, raios, vapores, fumos, reflexos), para além de referências religiosas.
Nos filmes da série The Matrix a imitação das sensações é tão perfeita que a fronteira entre o real e o imaginário é muito ténue, confundindo-se a realidade virtual com a verdadeira realidade. Percepcionamos que o Mundo em que vivem os personagens do filme (que se assemelha ao mundo em que vivemos) é real, embora seja na verdade uma fraude muito bem elaborada concebida por máquinas poderosas de inteligência artificial que nos controlam. Esse factor confirmou o medo que se criou com o surgimento destes conceitos. O filme também aborda naturalmente a preocupação de sermos dominados pelas máquinas (criadas pelos seres humanos), um receio que começou muito séculos antes e que ainda é muito explorado pela indústria do cinema.
Em The Matrix nós entramos para o cinema (espaço virtual), e para além da linguagem cinematográfica somos também confrontados com a linguagem informática (outro espaço virtual), o que faz com que entremos para o próprio espaço virtual. A falta de distinção entre o real e a ficção fez com que diversas pessoas, após verem o filme, passassem a acreditar que viviam de facto numa realidade virtual, e começassem a seguir a ideologia do filme.
Mas… quando lidamos com questões tão frágeis como a realidade, ou a superação da realidade e o ter que lidar com o desconhecido, é natural que surjam tantas reticências e entraves, assim como interpretações fanáticas ou bizarras. Contudo, talvez seja recomendável termos em atenção a mensagem de alerta dos filmes The Matrix para não deixar que acabemos por viver num mundo virtual e sermos governados por máquinas.