A questão da Identidade no filme Adão e Eva – 1ª Parte
O filme Adão e Eva, de 1995, com argumento e realização de Joaquim Leitão, retrata um quadrado amoroso em que todos: o galã latino, a mulher mais velha e o estrangeiro; estão loucamente apaixonados por Catarina, uma prestigiada jornalista, com trinta anos de idade que decide ter um bebé sozinha, protagonizada por Maria de Medeiros.
Há quem diga que este filme é uma comédia sobre o amor, as mulheres e a televisão mas eu prefiro chamar-lhe um filme que conta a história de uma mulher, falando dos problemas de relacionamento humano desde o início da humanidade e retratando em simultâneo os problemas da sociedade da época.
Uma coprodução luso-franco-espanhola (MGN Filmes e SIC – Portugal; Central de Producciones Audiovisuales – Espanha; e ARTCAM – França), ganhou, em 1996, dois importantes prémios a nível nacional: o Globo de Ouro para o melhor realizador e também para o melhor filme. Foi o primeiro filme português a quebrar a barreira dos 250 mil espectadores!
O descontentamento de Portugal com a pós-modernidade é bem exemplificado neste filme, havendo: um exagerado individualismo, não há objectivos transcendentes, apenas o aqui e agora, a satisfação das necessidades individuais e o ensimesmamento; uma instrumentalização da razão, dependência da tecnologia; isolamento e desinteresse político.
Impera a permissividade e aceleração. Não se quer construir uma identidade, mas impedir a sua fixação, o que causa um verdadeiro pânico, tornando o homem fragmentado e levando-o à solidão. A pós-modernidade é a confusão, o caos, a cacofonia, não há um modelo coeso, nem totalidade, tudo são fragmentos unidos aleatoriamente e em constante mutação.
Os estilos marginais de outrora tornaram-se nos estilos de vida de hoje. A identidade é uma procura permanente, o que faz dela algo sempre em construção e que acaba por nunca se concretizar. Há ainda uma luta pelo reconhecimento e emancipação feminina, a negociação do relacionamentos e o jogo da vida no momento do presente.
Há uma certa alusão à identidade simbólica, ou perdida, através de uma das primeiras alegorias do cristianismo: a história de Adão e Eva. Toda a história gira em torno da relação mais polémica de sempre.
Adão e Eva: A Identidade Portuguesa
Este filme começa, desde logo, com o direto de Madrid em que Catarina, uma jornalista na casa dos trinta, fala acerca da manifestação liderada por Rafael Tristan; denunciando os problemas da atualidade, nomeadamente o capitalismo. Neste caso os manifestantes unem-se para chamar a atenção à destruição de enormes quantidades de alimentos que poderiam alimentar milhões de pessoas que morrem de fome.
É uma mensagem de protesto: “contra os absurdos de um sistema que já não encontra soluções para os problemas que ele próprio criou…” (tal como diz Catarina, em voz-off, durante esta mesma notícia); que dá o mote ao filme. A partir daqui entramos na história do filme.
Tudo gira em torno do mundo da televisão, analisando os mecanismos da mesma. Vemos a desmistificação do que acontece atrás das câmaras. Helena representa o pior, mais egoísta, egocêntrico e desprezível do ser humano. O filme retrata a televisão, usando os seus mecanismos para refletir sobre a identidade. Além dos programas de informação, presentes logo no início do filme, e do futebol, vemos ainda os concursos, os ícones dominantes da televisão portuguesa. 1995 foi um ano de grande desenvolvimento dos canais privados em Portugal, um dos quais a SIC, coprodutora do filme. Até então só havia dois canais, refletindo-se aqui também acerca dos efeitos do boom de canais privados.
Na apresentação do canal 5, Helena vai revelar mais uma vez a sua hipocrisia, mau carácter e falta de escrúpulos, mostrando-se capaz de fazer tudo para chegar onde se quer, inclusive passar por cima dos outros. Irá ainda usar Ricardo, o fotógrafo, e chantagear Catarina com provas que nem sequer tem.
Quando se encontra com Rafael na paragem e lhe passa os documentos confidenciais, mente-lhe de imediato quando afirma que não é jornalista. Vemos que ela tem um qualquer estratagema e, ao contrário do que afirma: que não quer nada em troca dos papéis; quer efetivamente algo dele.
Consegue convencê-lo das suas enormes preocupações ambientais, com o seu pequeno joguinho de vítima e acaba por jantar com ele. Nota-se que ambos estão nervosos, possivelmente não estão habituados a este género de jogos de engate, como afirma Rafael.
Catarina mente-lhe, criando uma nova identidade, copiando a história de uma escritora que entrevistou (o que vimos a descobrir apenas mais tarde), para o conseguir atrair. Rafael, convencido da sua sinceridade, e comovido com as semelhanças de ambos, confessa a sua história.
Em seguida ficamos a conhecer Francisco, um homem que caminha para os quarenta anos, atravessando uma crise de meia idade e também uma crise económica. Francisco é o típico “macho latino”. Tem uma namorada submissa e serviçal, que nem sequer ouvimos a falar: não tem opinião ou direito a tê-la. O que o faz pensar que Catarina: “tem a mania que é boa e que sabe tudo”, como diz por telefone a Queirós, quando ele o tenta convencer a fazer um programa com Catarina. Realmente, Catarina é o extremo oposto à sua atual namorada.
Francisco vai acabar por se apaixonar por ela exatamente porque ela tem uma opinião própria, objectivos e não tem “papas na língua”. Mas, sempre que ele que controlar ou dominar demais, ela manda-o dar uma volta.
Ela quer ser independente, deixar de ser objecto, e por isso tem medo da dominação. Parte então do princípio de que não precisa de absolutamente ninguém e que consegue fazer tudo sozinha. Ela não é nenhum objecto, mas sim uma mulher cheia de objectivos que quer construir e defender a sua identidade.
Mas Catarina, vai acabar por mostrar que se sente protegida com ele, quando dançam em sua casa e, por fim, assume que realmente: “não consegue dar conta do recado sozinha”, quando se desfaz em lágrimas nas escadas da Assembleia da República.
Rafael procura Catarina e esta desmaia quando lhe abre a porta da sua própria casa. Quando confrontada com a realidade dos seus atos, perde o controle até sobre o seu corpo físico. Eles conversam e Rafael mostra a sua vontade de ser pai, confrontando-a com a ligação existente entre os dois, mas ela não aceita estar ligada a quem quer que seja.
Quando Tê entra e se apercebe de que Rafael é o responsável pela gravidez de Catarina fica louca e acusa-a de: “só mentir e usar as pessoas”, o que aqui se revela como verdadeiro.
No hospital, quando conversa com Catarina, Francisco pergunta-lhe: “Porque é que a vida é tão difícil?”, pergunta obviamente retórica. Ele mostra-se uma personagem com densidade mental e algo de metafísico, o que suscita em Catarina uma vontade de desabafar. Ela sente nele algo que a faz falar, mostrando os seus conflitos interiores, que até então vinha a negar, questionando a vida e questionando-se a si própria.
Enquanto conversam ele vai dizendo algumas frases feitas e piadas para tentar aliviar a tensão. Catarina fica furiosa, mas quando é confrontada com a verdadeira opinião de Francisco: “Quem brinca com fogo, queima-se”, também não gosta e sente-se agredida. Rapidamente Francisco diz que isso não é uma crítica, pois ele próprio também funciona como ela.
Nota-se um enorme ambiente de permissividade, trocando-se os parceiros com enorme frequência. Ninguém se importa de estar com este, que ontem esteve com aquele, e servem-se disso para chegarem onde querem.
Catarina chateia-se com Francisco por causa do seu conflito com os outros e consigo própria. Ele procura-a e ela assume que não aguenta a pressão da responsabilidade sobre as consequências dos seus atos, ainda por cima estando tudo a acontecer em simultâneo.
Francisco faz tudo para a ajudar, quer entrar na vida dela, tomar conta dela e resolver tudo. Tem ciúmes de Rafael, quando Catarina lhe diz para ele não se meter nesse assunto, que isso é apenas entre ela e Rafael. Francisco assume um: nós. Quer ser pai da filha de Catarina, diz que: “quer saber a quantas anda” e quer “assentar” com ela. Ela que se achava tão forte e pensava não precisar de ninguém, parece começar a ceder aos mimos de Francisco.
Helena é vítima da sua própria ambição e é obrigada a sofrer uma enorme vergonha na televisão, ainda por cima no seu próprio programa. Há um final moralizante para esta personagem maquiavélica, mostrando que o crime não compensa.
No final Francisco acaba por se queixar de não ter o direito a exprimir a sua opinião, sorrindo, mostrando que no fundo é isso mesmo que gosta e quer, uma mulher e amigos que tenham opinião e o confrontem com ela.