A questão da Identidade no filme Adão e Eva – 2ª Parte
Neste filme temos desde logo a alusão à influência cristã implícita no título do filme, título homónimo do programa que os personagens Catarina e Francisco irão fazer em conjunto: Adão e Eva, dois personagens bíblicos, protagonistas da alegoria do início da história da humanidade.
Catarina benze-se ao sair do hotel para ir ter com Rafael, quando lhe vai entregar os documentos confidenciais, o que mostra a confiança que se deposita na religião como ajuda nos acontecimentos do dia-a-dia, principalmente em ocasiões mais importantes e que receamos. Este traço é muito comum, não só ao povo português, mas também, ao povo espanhol.
No caso em questão, este pequeno sinal feito por Catarina em frente ao espelho do quarto do hotel, revela muito acerca da sociedade portuguesa, mostrando as suas enormes e profundas raízes cristãs.
Catarina volta a benzer-se quando se prepara para ir ao programa de Helena Amado, mostrando que mais uma vez só a religião é que a pode salvar de mais um momento que teme profundamente. E, é realmente salva, não pela religião, mas pela enorme amizade de Tê.
O futebol aparece na televisão quando Catarina vai ter com Francisco à churrasqueira para jantar: outro símbolo da identidade portuguesa, que ultrapassa quaisquer limites do puro desportivismo, tornando-se numa verdadeira religião. Não é por acaso que também os jogadores se benzem quando pisam o relvado antes de se iniciar o jogo.
A Pós-Modernidade no filme Adão e Eva
Catarina é uma pessoa real, que está à procura da sua identidade, intensificando-se esta problemática com a evolução da gravidez, oportunidade de redefinição da identidade, sendo muito instável, e estando a afirmação da sua individualidade em perigo.
Ela chega a negar a sua condição de ser humano, pois todo o ser humano é social e político. Catarina está tão obcecada com a sua independência que foge aos seus instintos básicos e renuncia às suas próprias condições de sobrevivência. Há ainda um grave problema de diálogo, a luta pelo reconhecimento e negociação do relacionamento.
A busca interior de Catarina apenas é mencionada quando esta desabafa pela primeira vez com Francisco. Ela trata por vezes o seu bebé, ainda na sua barriga, como a sua consciência.
A pessoa mais normal é a mais hipócrita e detestada, Helena, crítica à sociedade de aparências em que vivemos. Francisco representa a identidade mais convencional e mais legitimada. Tê é completamente marginal, ou terá sido marginalizada pela sociedade que a concebeu? Esta personagem caracteriza uma verdadeira identidade alternativa, de tal modo, que atinge um grave estado de loucura, forçando os seus amigos a interná-la. Os medicamentos tornam-na num vegetal, mas fazem-na recuperar e reintegrar-se na sociedade, apesar de ela manter o seu modo distinto de atuar na sociedade.
Logo no início há um enorme grupo de pessoas que se juntam em frente a edifícios do governo para manifestarem o seu descontentamento com as políticas tomadas. Quanto a esta manifestação, uma explosão momentânea de solidariedade, não volta sequer a ser mencionada durante o filme, nem parece preocupar Rafael. Este passa quase todo o filme obcecado em encontrar Catarina, estando quase todo o tempo em Portugal, atrás dela.
Todos andam com todos. Catarina quer engravidar, procura um bom pai para o seu filho, usa-o para conseguir o que quer, sem lhe perguntar nada ou dar explicações, e mentindo-lhe acerca da sua identidade (negação da identidade?) para que ele não a possa encontrar e desaparece sem deixar rasto.
Todo o filme acompanha a gravidez de Catarina, época indicada como oportunidade para as mulheres resolverem conflitos da sua personalidade que até então ficaram por resolver. Devido ao seu contacto com o seu eu mais interior, e a todas as questões fisiológicas inerentes, existe uma maior sensibilidade e conflitos emocionais.
Catarina passa a vida a discutir com Tê, desde que se separam, e depois discute também com Francisco e com todos. Aliás, todos discutem com todos, parecendo que a sociedade vive à beira de um ataque de nervos. Todos gritam e se chamam nomes uns aos outros, tanto em locais privados como públicos, o que confirma a cacofonia, confusão, caos, falta de moral e de política.
O marido da irmã de Tê abandona-a passado pouquíssimo tempo de casarem, o que vem reforçar a enorme crise da instituição matrimonial.
Francisco adverte ainda Catarina, na churrasqueira, de que: “não se devem fazer planos, fica-se sempre preso a eles.”. Este é o melhor exemplo de uma época que tem o horror da fixação e não se quer comprometer com nada. É Francisco, que estava até disposto a abandonar a sua liberdade e fixar-se com Catarina, que lhe atira com isto à cara, parecendo haver aqui uma certa inversão dos papéis.
Há um descontentamento com a pós-modernidade, demonstrado pelo excessivo individualismo e narcisismo: Catarina acha sempre que não precisa de ninguém para nada. Há também a instrumentalização da razão, que se apoia na tecnologia para tudo: é a televisão que forma as opiniões e faz a história, sendo os protagonistas, em simultâneo, fazedores de opinião e vítima dos media; o uso do gravador de mensagens para se esconder dos outros e como escudo de proteção; o vídeo como meio de comunicação e testemunho deixado para a posteridade, para o bebé; as fotografias como provas que incriminam Catarina; o registo de vídeo que a irá salvar.
Também o isolamento e desinteresse político, são mostrados. Quase não se fala do governo português, apenas se critica fortemente o governo espanhol. A única referência ao governo português é feita por Tê, que se referencia a si própria como uma figura política sem importância, é adjunta de um ministro, o que pode denotar, metaforicamente, a loucura e paranóia do governo. De resto não há observações diretas ao governo, sendo este quase completamente ignorado.
Apenas há a preocupação com os interesses individuais. Mesmo dentro do pequeno grupo de amigos que formam, cada um está sempre preocupado apenas consigo próprio, claro que Catarina está preocupada com a bebé, mas mesmo assim demostra-se uma mãe irrefletida: bebendo álcool, não deixando de fumar, etc.
No final do filme denota-se um interesse pelo outro, quando todos querem salvar Catarina e a bebé, o que parece tratar-se de um instinto animal básico. É pelo nascimento que se dá o fim da narrativa. Acaba o conflito, resolvendo-se de forma conciliatória. É um final feliz, que fica aberto a interpretações positivas. Nasce Eva, a primeira mulher, uma nova esperança, para iniciar uma nova série de conflitos.
Em suma, neste filme fala-se principalmente da transgressão da normalidade: disfunção familiar, relações instáveis, permissividade, feminino, homossexualidade e bissexualidade. A permissividade, aceleração, o horror da fixação da identidade e a identidade em crise mostram-se também uma constante durante todo o filme e nos seus elementos. Também o caos, a falta de modelos e a solidão são factores reafirmados.
Tecnicamente o filme agrada por ter diálogos fluidos e naturais, usando linguagem corrente. Os planos são dinâmicos, curtos e contínuos e as transições de espaço e tempo bem conseguidas.
Numa altura em que começaram a surgir no cinema português filmes que evocam a reflexão sobre questões tais como: a imigração, o racismo, a dependência de drogas, por exemplo em: Corte de Cabelo, Mutantes e Ossos; o filme Adão e Eva apresenta um tema preocupante: as relações instáveis e a emancipação feminina, mas num ponto de vista que parece um pouco redutor do mundo feminino e fundamentado em clichés: a rivalidade, vingança, etc.
Não se compreende porque é que Catarina procura um espanhol para pai do seu bebé, não haveria nenhum ativista português que a interessasse? Será um modo de levantar o tema da submissão do português à língua estrangeira. Tanto Catarina como Francisco, se dirigem sempre a Rafael em espanhol e não em português, quando ele percebe e até sabe dizer qualquer coisa em português.
Apesar da grande densidade psicológica de certos momentos, rapidamente se apressa em apresentar momentos de comédia leve para libertar os ânimos e não se tornar demasiado sério ou pesado. Para mim é aqui que o filme peca, ao tentar agradar a todos, sendo um filme com história e densidade, mas também leve e de fácil digestão, embora pareça ser este um dos factores que tornou Adão e Eva o primeiro grande êxito de bilheteiras português.
Foi feito um grande investimento em publicitar o filme, nomeadamente pela apresentação do trailer na televisão, possível devido à coprodução com a SIC. Preponderantes terão também sido: a identificação do público com o tema, extremamente atual e inquietante; e com as personagens, muito reais e desorientadas, procurando o caminho da afirmação da sua identidade.
Este artigo é a 2ª parte do texto A questão da Identidade no filme Adão e Eva – 1ª Parte.