Rough Aunties: documentário de observação de excelência
Não é possível ignorar o trabalho da realizadora Kim Longinotto uma das realizadoras da atualidade cujo trabalho mais me tocou, “reconhecida internacionalmente pelos seus pungentes retratos e pelo seu sensível e apaixonante tratamento de tópicos difíceis” (citando Zero em Comportamento – Associação Cultural).
Rough Aunties (2008) o seu premiado documentário de observação é um filme sobre a luta diária de um grupo de mulheres que combatem o abuso sexual de crianças em Durban, África do Sul. Thuli, Mildred, Sudula, Jackie, and Eureka dedicam a sua vida a ajudar aqueles que são mais vulneráveis, formando um grupo capaz de ultrapassar as divisões sociais e raciais, combatendo a corrupção, a cobiça e a apatia, enquanto procuram justiça para as vítimas.
Este documentário mostra o trabalho destas mulheres, que inspiram a mudança, como todas as protagonistas dos filmes da britânica Kim Longinotto. Neste caso, a realizadora consegue entrar no dia-a-dia da Associação “Bobbi Bear” e passa realmente despercebida mesmo no seio de conversas complexas, como é o caso de crianças que descrevem o processo da sua violação. Aliás, Kim Longinotto consegue ir mais longe, há quem diga que longe demais, como é o caso da sequência do filme Rough Aunties em que ficamos a saber que o filho de Studla morreu no rio por causa da negligência de uma empresa local. A realizadora mostra a agonia da mãe de uma forma muito íntima.
No website realizado para a promoção do filme há uma preocupação grande em mostrar as caras da organização em foco no documentário, assim como a necessidade de explicar bem o trabalho e o processo de donativo e voluntariado associado. Mais do que um filme de denúncia, Rough Aunties consegue ser um verdadeiro trabalho de apoio à instituição sul-africana.
Rough Aunties: como tudo começou
Numa sessão realizada na cidade do Porto, num debate com a realizadora Kim Longinotto que se seguiu ao visionamento do filme, foi possível perceber que estas mulheres face à falta de apoios da sua própria sociedade, que tem por si só inúmeras dificuldades, perceberam que tinham que sair da sua comunidade e ir buscar ajuda fora. E tiveram a perspicácia de ver nos documentários de Kim Longinotto um veículo para conseguir uma exposição mundial sem precedentes para a sua instituição.
Kim Longinotto vem fazendo um trabalho de denúncia muito grande e conseguindo a exibição dos seus filmes internacionalmente, principalmente em Festivais de Cinema de importância. Neste caso, tendo o contacto partido da própria instituição “Bobbi Bear”, e com o apoio do Channel 4, canal televisivo do Reino Unido, este trabalho conseguiu uma exposição maior ainda do que o habitual.
Apesar das nobres intenções por detrás do projecto, o filme não escapou a algumas polémicas e críticas. Na sequência do rio, referida anteriormente, a realizadora explicou que, durante a produção, as mulheres da equipa “Bobbi Bear” definiam quais os momentos que poderiam ou não ser filmados. E apenas chamavam Kim Longinotto para ela filmar as atividades autorizadas e/ou apropriadas.
Este caso não foi exceção, como vários outros que ocorreram. Em todo o filme vemos não só as tragédias que acontecem diariamente na comunidade, mas também as histórias particulares destas mulheres: a morte de um filho por negligência de uma empresa, a morte de um cunhado num assalto à sua própria casa… Mas vemos também a esperança do salvamento de uma criança, a paixão de uma das mulheres que acolhe uma criança órfã da instituição, entre tantas outras situações emocionantes.
Creio que é impossível sair do visionamento de Rough Aunties indiferente. Kim Longinotto chama ainda a atenção para o facto de que agora o poder de modificar a situação atual está também nas nossas mãos, uma vez que ficamos conscientes do que está a acontecer e temos ao nosso dispor meios para ajudar.
Um filme que incita à mudança
O objetivo deste modo documental é vermos a realidade tal como ela acontece, sendo o cineasta um observador neutro, que não intervém na ação. Para conseguir este efeito e equipa de Kim Longinotto é normalmente constituída pela própria realizadora, na operação de câmara, um técnico que captura o áudio e uma realizadora local. Não saindo do modo preconizado por Bill Nichols, como documentário de observação, a realizadora inglesa e a sua equipa passam completamente despercebidas por trás do equipamento.
Podemos em algumas alturas achar que a presença de uma equipa de filmagens pode dificultar o ato de testemunhar das crianças, após um evento tão traumático como uma violação, mas de acordo com o que vemos percebemos que não. A relação que se estabelece entre a pequeníssima equipa técnica e a instituição, neste e noutros filmes da realizadora, é de tal modo cúmplice que as vítimas se sentem à vontade perante as câmaras.
Rough Aunties é um documentário de observação de excelência, ou um duro “balde de água fria”, mostrando-nos a realidade pura e crua de vítimas inocentes, mas também um exemplo verdadeiramente inspirador e incentivador à mudança.