Timecode: como fazer cinema de maneira diferente
O genérico introduz-nos lentamente ao filme (no fim irá fazer o oposto) através do lettering e do seu movimento e das imagens utilizadas, começando a apresentar os personagens e a acção, enquanto forma um ecrã dividido em quatro. A integração com a acção é muito boa, acontecendo de forma gradual e preparando o espectador para a divisão do ecrã em quatro e da necessidade de leitura simultânea de diferentes formas.
Vemos no ecrã quatro imagens de quatro câmaras que acompanham quatro personagens: um executivo do cinema (Stellan Skarsgard) e a sua esposa (Saffron Burrows), uma aspirante a atriz (Salma Hayek) que está no meio de um caso com uma mulher (Jeanne Tripplehorn) cujas ações são essenciais na história. Os personagens são individualmente a ser apresentados e começamos a seguir a jornada dos protagonistas.
Tal como numa peça de teatro, o som de um dos ecrãs eleva-se quando o momento é importante, enquanto o dos outros monitores baixam, e assim sucessivamente. A música acompanha a acção, funcionando como elemento unificador de toda esta confusão.
De repente, começamos a aperceber-nos de que todos os personagens caminham para o mesmo espaço. Vemos um relógio e subitamente dá-se um tremor de terra em simultâneo nas quatro imagens: tudo está a acontecer ao mesmo tempo! Os quatro personagens vão-se encontrando, ou cruzando, passam de uma câmara para a outra e aparecem em mais do que uma câmara ao mesmo tempo. Todos se conhecem e as acções completam-se ao acontecer em simultâneo.
Timecode: Um novo modo de fazer cinema
O filme Timecode de Mike Figgis é um achado. Este é um filme acerca da pré-produção de um filme, tendo por base os romances que acontecem entre os envolvidos no meio. No fim é pronunciado o objectivo primordial: a necessidade de inovar no cinema, explorar e encontrar novos caminhos, quebrando barreiras na edição.
Timecode é certamente inovador no método de narração. Não diria que vemos quatro histórias ao mesmo tempo, mas antes quatro perspectivas da mesma história. Todas as sequências são construídas para serem mostradas em quatro imagens distintas que aparecem em simultâneo no mesmo ecrã. Para isso, quatro câmaras seguem 98 minutos da vida de quatro personagens.
O resultado são quatro planos-sequência, sem montagem: o tempo de filmagem é igual ao tempo real do filme. Os personagens tinham ainda que estar próximos, condicionante necessária para o seu encontro no mesmo espaço durante o tempo do filme, sem se tornar demasiado maçador, e para que os personagens se conseguissem entrecruzar nas câmaras uns dos outros. É um trabalho soberbo! Segundo David Robert, “Timecode é o primeiro filme a combinar filmagem em DV, plano-sequência e split-screen.”
A edição de vídeo coloca apenas os quatro planos-sequência em sincronia. É a edição sonora que irá preocupar mais o autor e permitir a percepção da narrativa. Para cumprir o seu objectivo, Mike Figgis delineou uma linha narrativa, para a qual compôs uma partitura musical que estrutura a acção – num acto muito invulgar para um realizador do seu calibre. Este é um filme em que a música adquire até mais importância do que os diálogos, explicitando bastante mais a acção.
No meu ponto de vista o resultado do trabalho notável de Mike Figgis é certamente incomum no conceito e na técnica, e é sobretudo muito inovador. Todavia, considero fraco na narrativa, pois o seu potencial parece-me pouco aproveitado. Há, por exemplo, alturas em que apenas acontece alguma coisa numa das imagens, sendo que nas outras as acções exibidas são fracas e repetitivas.
A tarefa não era fácil. Há muita gente e muita acção implicada, muitos encontros, muitos cruzamentos, muita proximidade das câmaras, muitos horários a cumprir frame a frame. Tudo tinha que estar milimetricamente planeado, para que não houvesse hipótese de erro, mas foi isto precisamente que limitou a acção de Timecode.
O desempenho dos actores é muito bom: nunca é demais relembrar que o filme é constituído por quatro planos-sequência simultâneos de 98 minutos cada, e portanto correspondem a 98 minutos de performance ininterrupta. A mesma consideração se aplica a toda a equipa técnica, claro. Foram concerteza necessárias muitas horas de ensaio e gravações até se chegar ao ponto em que foi filmado o filme, onde a acção-tempo-espaço teve de ser coordenada de modo a atingir este resultado.
As influências de Timecode
O que vemos em Timecode aproxima-se um pouco do cinema verité e das suas raízes soviéticas, sendo transmitida a vida dos quatro personagens em directo, sem interrupções. Mas para o espetador a experiência é bastante diferente: parece que somos nós quem escolhe o que quer ver entre a amálgama de imagens disponíveis!
A brilhante edição sonora guia-nos através dos quatro ecrãs, tornando apenas um deles o centro da acção, sendo os restantes complementares (quando há a acção-reacção de personagens distantes, quando vemos os personagens em mais do que uma câmara ou quando trocam de câmara), ou por vezes nulos (quando não acontece nada).
No início do filme, quando ainda não conseguimos entender o que se passa e tentamos a todo o custo perceber qual o enredo surge o pimeiro tremor de terra, que nos mostra que a acção se passa ao mesmo tempo nas quatro imagens, mas também que os personagens estão próximos uns dos outros. Além disso, a escolha de Los Angeles como pano de fundo não é inocente. A cidade dos anjos é frequentemente abalada por terramotos, integrando a cidade automaticamente como um elemento da acção, destacando e intensificando momentos dramáticos da narrativa. No meu ponto de vista funciona também como um interessante atributo estético ao acontecer nas quatro imagens em simultâneo.
A exposição do conceito do próprio filme perto do final, por um personagem do mesmo, mostra que esta não é apenas uma experiência daquilo que a técnica permite hoje em dia fazer, mas uma necessidade de levar o cinema mais além e construir novos modos de fazer cinema. E esse é um objectivo que foi alcançado com brilhantismo por Timecode.