L’Enfant: adultos que são crianças a viver num mundo brutal
O filme L’Enfant é uma longa metragem escrita, produzida e realizada por Jean Pierre e Luc Dardenne, tendo sido apresentada pela primeira vez a 17 de maio de 2005, no Festival de Cannes, no qual foi distinguida com a Palma de Ouro.
Distribuído pela Sony Picture Classics, o filme conta uma duração de 91 minutos e foi orçamentado para 4 milhões de dólares americanos, tendo resultado num lucro estimado de 5,5 milhões de dólares americanos. O elenco integra Jérémie Renier como Bruno, Déborah François como Sonia, Jérémie Segard como Steve, Fabrizio Rongione como um jovem bandido e Olivier Gourmet como um detetive.
O filme é focado no casal Bruno e Sonia, embora Bruno seja assumido como o protagonista. Bruno é um jovem adulto que subsiste na vida graças ao dinheiro que consegue extrair de pequenos furtos, cometidos em colaboração com dois pré-adolescentes, um deles chamado Steve. Sonia, por outro lado, não parece ter qualquer preocupação moral com a origem do dinheiro que o namorado traz para casa e desfruta-o em momentos frívolos de divertimento.
A Criança
Bruno e Sonia são pais de um bebé recém-nascido, mas a perspetiva que têm face à criança é distinta. Encarando a criança como fonte de lucro, Bruno decide vendê-la por cinco mil euros a uma organização de tráfico humano. Todavia, com a venda do bebé, assiste-se a uma ruptura física e emocional do casal por decisão da mulher. Com intenção de obter o perdão de Sonia, Bruno recupera o filho Jimmy, submetendo-se às consequências de tal ato. No momento em que o acordo com os traficantes é desfeito, Jimmy regressa à tutela de Sonia, mas esta recusa-se a perdoar Bruno.
Mais tarde, Bruno regressa às suas atividades criminosas com Steve mas, num dos furtos, acontece um imprevisto que culmina na detenção de Steve. Bruno, apesar de ter escapado, acaba por sofrer uma transformação moral e, de livre vontade, entrega-se às autoridades, assumindo a total responsabilidade pelo delito. No final do filme, com Bruno já encarcerado, a esperança de reconciliação com Sonia é deixada em aberto quando esta o visita na prisão. Na cena final, choram abraçados, o que sugere a hipótese de que o perdão possa, de facto, acontecer.
Integrando princípios característicos do realismo social, L’Enfant apresenta uma lição sobre paternidade e moralidade através de personagens estereotipadas que lutam para sobreviver numa sociedade adversa, onde lidam com problemas como a pobreza, o desemprego, o crime, a gravidez na adolescência, o tráfico humano e a prisão.
A ação, mesmo passando-se uma área urbana não identificada da Bélgica, é facilmente transposta para uma perspetiva global, envolvendo sociedades que padecem dos mesmos problemas. A narrativa assume um fluxo linear, visto que os acontecimentos são reproduzidos na sua ordem cronológica e se encontram divididos a partir de um momento-chave: o desmaio de Sonia, após descobrir que Bruno vendeu o seu filho. Esse momento representa uma mudança de sorte na vida de Bruno e uma mudança na moralidade da personagem.
Ao longo de L’Enfant, o realismo social torna-se evidente através da história de Bruno e Sonia que, integrados numa classe social baixa – como atesta a casa onde vivem – procuram ultrapassar as adversidades da vida, recorrendo a qualquer meio, sem considerarem o valor moral dos seus atos.
Por essa razão, um dos temas manifestados é o processo de descoberta, por parte das personagens, dos seus limites morais. É a sua amizade por Steve e amor por Sonia que o compelem a ter a atitude moral correta. Caso contrário, seria expectável que continuasse a viver a sua vida amoral e criminosa.
No final do filme, o facto de Bruno ter enfrentado as consequências para recuperar o seu filho e ilibar Steve, prova que não descobriu apenas a sua moralidade, mas também que foi bem-sucedido na prova que foi colocada à sua própria sobrevivência. De certa forma, mesmo terminando o filme atrás de grades, Bruno é um vencedor porque sobreviveu inserido num meio onde poucas razões tinha para vencer.
A História de L’Enfant
O título do filme L’Enfant tem um triplo significado, sendo que pode ser feita a pergunta: quem é a criança mencionada? Numa primeira impressão, e conhecendo o enredo de forma genérica, pode-se pressupor que a criança referenciada é Jimmy, o filho de Sonia e Bruno, que assume um papel central na narrativa. Todavia, o bebé Jimmy assume-se nesta longa metragem como um leitmotiv visual uma vez que, estando presente no filme, não atua como uma personagem, mas sim como catalisador da ação.
Na maior parte das cenas em que surge no ecrã, Jimmy é apresentado sem voz, sem rosto ou até mesmo ação. Mesmo que o bebé ou o carrinho de bebé apareçam constantemente, ou estejam presentes para propulsionar o enredo, Luc Dardenne esclarece em entrevista a Gerald Perry (2006) que Jimmy não é a criança que dá título ao filme, visto que esta não é uma longa metragem sobre paternidade.
Ainda assim, numa outra entrevista com Geoff Andrew (2006), Luc Dardenne revela que sempre houve um cuidado em mostrar a criança e exibir que era um bebé a sério. Para garantir o realismo de Jimmy, foram usados mais de vinte bebés durante as gravações, tendo sido apenas duas cenas perigosas executadas com um boneco. Esta visão da presença visual do bebé como catalisador para o enredo corresponde à definição de leitmotiv visual apresentada.
Por outro lado, a criança também poderá ser as três personagens principais do filme: Bruno, Sonia e Steve. Não obstante, uma vez que Bruno é a personagem principal do filme e nos exibe com mais frequência o seu comportamento infantil, é por norma identificado como a criança do título. A sua infantilidade é nos demonstrada até ao momento em que o seu caráter moral emerge. Até então, a personagem parece estar desprovida de emoções nas decisões morais, tem atitudes egoístas, mantém um espírito libertino e assume um descompromisso para as responsabilidades da vida e sociedade.
No filme, os irmãos Dardenne exibem uma cena que revela a possibilidade de existirem motivos psicanalíticos para justificar o comportamento infantil de Bruno: quando visita a mãe, o telespectador percebe que a relação entre os dois não é chegada e estável. Além do mais, a figura paternal mais próxima de Bruno não é sequer o pai, mas sim o padrasto, de quem há igualmente um afastamento e que poderá justificar a impreparação de Bruno para assumir deveres parentais.
A falta de emoção no processo de tomada de decisões e a capacidade de projetar o impacto que tais decisões provocarão a longo prazo é uma característica inerente a Bruno. Para esta personagem, tudo na vida tem um preço. É por esta razão que é insensível ao ponto de vender o bebé Jimmy por questões de lucro, incapaz de antecipar o efeito emocional que tal ato terá sobre Sonia.
O impacto social do filme L’Enfant foi notável nos meses que se sucederam à sua apresentação. Ao abordar questões como tráfico humano e a marginalidade da juventude, o filme propiciou debates relevantes para a criação de políticas públicas que combatessem estes problemas de forma efetiva. Como mencionado anteriormente, o próprio filme foi realizado na sequência de notícias, em 2003, sobre problemas de tráfico humano na Bélgica.
A atualidade do tema foi ao encontro do público e estimulou o debate. Entretanto, a representação de uma juventude perdida, desiludida, sem perspetiva de futuro e as suas respetivas consequências poderiam ser interpretadas pela devida valorização de políticas assistencialistas de apoio a camadas da sociedade visivelmente fragilizadas e/ou desamparadas pelo próprio sistema.
O filme foi distinguido em França com a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2005 e como Melhor Filme de Língua Francesa nos Prix Lumières de 2006. Na Bélgica, L’Enfant foi premiado em várias categorias dos Joseph Plateau Awards. Outras distinções foram feitas pelos Belgian Film Critics Association, Guldbagge Awards, Russian Guild of Films Critics, Toronto Film Critics e Valvidia International Film Festival. O filme foi ainda nomeado para diversos prémios internacionais, além de ter sido a candidatura oficial da Bélgica para os Prémios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas na categoria de Melhor Filme de Língua Estrangeiro.