Obras-Primas do Cinema Europeu: Um Dia No Campo de Jean Renoir
A filmografia de Jean Renoir (1894-1979), conquanto extensa, variada e procedida em vários países e diversas circunstâncias, possui pelo menos 3 obras-primas: Um Dia No Campo (Partie de Campagne, 1936), A Grande Ilusão (La Grande Illusion, 1937) e, finalmente, o primus inter pares, o filme A Regra do Jogo (La Règle du Jeu, 1939), todos realizados, como seus títulos originais estão a indicar, na França.
Um Dia No Campo restou interminado. Contudo, não se ressente disso. Pelo contrário. Poderia mesmo ter sido planejado até onde foi, porque daí para frente – como demonstram as cenas finais, a título de epílogo de um dos encontros amorosos – corria o risco, como correram tais cenas, de descambar para o drama comum ou mesmo (quem sabe?) o dramalhão.
Aliás, esse desfecho até parece ter sido inserido por outrem para tentar dar acabamento à obra.
O fato é que esse pequeno filme alcança padrão que só encontra rival em sua filmografia nas duas outras obras citadas. E encontra, porque nelas Renoir atinge as culminâncias da arte.
Em Um Dia No Campo, excetuada a sequência final, tudo é adequado e poético.
Um Dia No Campo: Percepção e Sensibilidade de Jean Renoir
A perspicácia autoral inicia-se pela biotipologia da família parisiense que protagoniza os acontecimentos, simples passeio dominical ao campo por meio de uma charrete, transformado numa das mais belas obras de arte já concebidas e realizadas, encravada no cerne da natureza humana poeticamente exposta.
Se essas personagens são esplendidamente plasmadas, não menor é o atilamento da escolha dos atores destinados a representá-las, corporificando-as e dando-lhes vida, movimento, gostos e aspirações.
Se isso não bastasse, a essa galeria acrescentam-se os moradores e hóspedes da estalagem campestre, desde os mais discretos aos dois dons juans.
A localização das filmagens, à beira de um rio que, àquela época, ainda conservava seus atributos naturais valorizados pela moldura de campos, bosques e matas, também constitui elemento básico da composição pictórica do filme, no qual, como se sabe, Jean reproduz alguns dos quadros pintados por seu pai Auguste.
Reunidos tais elementos, que só desenvolvida percepção do fenômeno humano e afiada sensibilidade poderiam proporcionar, Renoir infunde-lhes vida e beleza, emoção e atração, simpatia e amor, numa simbiose do ser humano com a natureza, em que tais fatores encontram livre expansão.
Cada gesto, tomada, palavra, diálogo, olhar e atitude das personagens, notadamente das protagonistas femininas (mãe e filha), deriva diretamente da conjunção das referidas percepção e sensibilidade para compor painel de vida formado por série de quadros consistentes das cenas cinematográficas que os animam, agitam e movimentam.
A troca de pares, o modo como se processa e, ainda, a movimentação que a determina vêm demonstrar, se tudo antes e o mais já não fossem suficientes para revelá-la e proclamá-la, a consciência de Renoir ao elaborar o filme e o domínio dos meios necessários e indispensáveis para concretizá-lo em cenas memoráveis de leveza e poeticidade.
Tudo num filme em que se concentra o aparato cultural milenar europeu, herdeiro das civilizações que o antecederam, burilaram e sedimentaram, com particular evocação do lirismo clássico grego, simultaneamente em igual dosagem, poética e realista, pela impregnação de forte conteúdo humanista, em que emoção e encantamento fundem-se numa só e mesma criação imagética para transmitir o fluxo da vida, de seres humanos vivendo e se relacionando amorosa e espontaneamente.
Um Dia No Campo é completo em sua incompletude, porque nele forma e desenvolve o ciclo vital da atração e satisfação emocional e física dos sexos com intensidade relacional e requinte poético, associando o ser humano e a natureza de modo preciso, e que, depois de feito (e necessariamente, como outras grandes obras de arte, teria de sê-lo), tornou-se indispensável à humanidade como criação de si mesma.