Fahrenheit 451 de François Truffaut: Uma sociedade sem memória
Em 1966, François Truffaut, nome maior da nouvelle vague francesa, lança Fahrenheit 451, seu único filme falado em inglês. A história é adaptada do livro homónimo de Ray Bradbury, representando uma sociedade distópica convincente, onde bombeiros do avesso lançam chamas a livros de forma missionária, como quem expurga maus pensamentos.
Livros são inimigos, causam mal estar à consciência. As paredes são revestidas a televisores que tudo informam, os jornais impressos são figurativos e as esposas anestesiam-se como donas de casa no sofá participando da novela. Comprimidos numerados, transfusões de sangue, a amante e a esposa são a mesma pessoa em circunstâncias diferentes.
Guy Montag (Oskar Werner, Jules em Jules et Jim), figura principal, é bombeiro por conforto e leva uma vida pacata, conformada com sua esposa Linda (Julie Christie). Montag nunca leu os livros que queima, no entanto, sabe encontra-los como ninguém.
Cheira-os, apalpa-os, sabe-lhes a forma, o esconderijo ideal, mas desconhece sua essência por completo. Tem medo e comodidade, até ao dia em que conhece Clarisse (também Julie Christie), mulher subversiva, apaixonada por livros que lhe instala a dúvida. Porque nunca leu?
Longe de ser o filme mais forte de Truffaut, é uma quebra na tendência, um passo no desconforto com a coragem de quem sabe perder, por isso arrisca. Sua obra é marcada pelo inesperado, por filmes diferentes onde se esmiuça uma linha, uma personalidade, uma independência ímpar que sabe o caminho.
Truffaut foi miúdo rebelde como Antoine Doneil em Les quatre cents coups e quebrou, várias vezes, sua própria tendência como um acossado, como um perseguido pelo conforto que almeja e o conforto que não quer.
Fahrenheit 451, é um filme bem interessante com várias intersecções com a contemporaneidade. Uma fotografia apelativa com a direcção de Nicolas Roeg e várias nuances brilhantes ao estilo de Truffaut. Uma sociedade sem memória, apática no vai e vem do dia-a-dia e que dispensa a dúvida como força que deslinde a ambiguidade da natureza humana.